sábado, 29 de maio de 2010

Espinhos

Faltava uma semana para ele. Por séculos, era o dia que ela mais odiava - mais do que as datas de vencimentos das contas. Anualmente, quando o dia chegava, ela repetia o mesmo ritual: faltava o trabalho, ligava para o chefe dando alguma desculpa, dormia um pouco mais, ouvia metal no volume máximo e desejava com toda a força que o amanhã chegasse logo. Não nesse ano. Dessa vez, o plano de isolar-se em outra dimensão não funcionaria. Trabalhava no comércio agora, ganhava por comissão e infelizmente sabia que precisava daquele dinheiro sujo para pagar aquelas contas que se acumulavam na mesinha da sala.

Sentia-se mal por isso. Iria alimentar-se do lucro gerado por aquela nojeira? Talvez nem conseguisse comer se lembrasse que as moedas que compraram o alimento vieram das mãos de um homem apaixonado, a fim de agradar uma mulher, que sorriria ao receber aquelas rosas vermelhas. Eca! Detestava ser florista no Dia dos Namorados. Queria mesmo era que a amada gritasse de dor ao se ferir num espinho que a menina da floricultura "acidentalmente" não retirou. Bem feito.

Não falava desse sentimento, claro. Nas vezes em que tentou, as amigas discursavam sobre inveja e mau humor. Não, ela não invejava aqueles casais melosos, repletos de beijinhos e cartões com corações em toda parte. Não, não era culpa do mau humor dela que estivesse sozinha ano após ano no 12 de junho. Era só uma questão de ideologia, princípios, amor próprio, independência, feminismo, inconformismo e auto-suficiência. Não? Não.

No dia terrível, acordou bem cedo. Vestiu o sorriso amarelo, que fazia parte do uniforme da "AlegRosas". Nem fez questão de pentear o cabelo ou disfarçar aquelas olheiras com um pouquinho de maquiagem. Decidiu vender o máximo que pudesse para que o sacrifício de participar do mundo naquela data valesse a pena. "Esqueceria" os espinhos nas rosas, como vingança.

Foram as 12 piores horas da vida dela. O estômago embrulhava a cada venda. Algumas vezes realmente achava que tinha de correr para o banheiro e colocar pra fora, em forma de vômito, a insatisfação com o que via. Depois que o último comprador deixou a loja, alegrou-se por ter sobrevivido.

Já de portas fechadas, resolveu presentear a si mesma com as flores feias que sobraram no balcão. Feriu-se com um espinho sacana, escondido atrás de uma folha. "Merda", gritou. Mas não sentiu a tocarem nos ombros e perguntarem, com sorriso e pesar, se estava tudo bem. A sensação de ter por perto alguém que se importasse quando ela estivesse ferida seria incrível. "Merda", sussurrou. Deveria ter limpado melhor aquelas rosas que vendeu...

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Espetáculo

“Cento e vinte e cinco dias”, repetia em sussurros, enquanto ouvia Chopin. Sim, ela os contava. Um por um. E agora, deitada no quarto escuro, lembrava-se da sensação que tinha toda vez que ele estava à porta. Sempre às sextas, no mesmo horário. Pontualmente, de forma sincronizada com o tocar dos dedos dele na campainha, o coração dela ensaiava um disparar -tal como o ritmo que agora acelerava no concerto do pianista que ouvia. Ele era o que Mia ansiava durante toda a semana. E ao fechar os olhos, ela podia sentir como era tê-lo por perto.

Arrumava o cabelo no espelho do quarto, descia as escadas em tempo recorde e abria a porta esperando ser beijada. Ainda tinha dois segundos para sentir o perfume, antes dos lábios se tocarem. Quando se uniam, não podia pensar em mais nada. O corpo repetia aquela coreografia excitante: a língua deslisava sobre a dele (e por baixo, e pelos cantos...), as borboletas se agitavam no estômago, os pelos acordavam e o cérebro controlava os pés – se não os forçasse contra o chão, sentia que se desprenderiam e ela flutuaria, escapando daquele beijo. E só o que ela queria, antes e agora, era permanecer nele. Fazer parte daquela ópera de desejo.

Sem ele não havia espetáculo. Mia sentia-se em um teatro vazio, enquanto as notas que saiam do piano, como eternas namoradas, encaixavam-se perfeitamente para compor a melodia que a perturbava. Reconhecia a sensibilidade e genialidade de Chopin. Mas sabia que incomparável mesmo era aquele som da campainha, que há cento e vinte e cinco dias não era regido pelo maestro da orquestra que ela mais gostava.

"I feel. No more can I say"

“Presta atenção nesta música”, disse ele. Estava de olhos fechados. Deitada, com a cabeça embaixo da janela. E uma moça com voz suave começou a sussurrar frases em outra língua... Arrancava de um canto meu qualquer coisas que eu havia trancafiado há algum tempo. De propósito. Com toda a razão. Falou dos caminhos que eu nunca encontrava, de quem não estava ao meu lado naquele momento.

Enganou-se. Sobre a cama, quatro pernas imóveis embaralhadas. Braços em abraço tenso para que o corpo entre eles não me escapasse. Respiração lenta. Qualquer suspiro mais forte provavelmente abortaria o que estava por vir. Preferia não correr o risco. Dois sentidos davam conta de mim. Um ouvia aquele sussurro que sacudia a inércia das minhas lembranças. O outro experimentava as pontas daqueles dedos indecisos, que deslizavam até meu joelho e depois corriam pelo braço. Sem pronunciar palavra ou pedir licença.

Em pouco tempo, excluí do meu delírio também a dona da voz suave. Escutei as minhas próprias canções, que faziam todo o sentido para mim. Para nós. Aquelas que eu mesma havia censurado. Senti a que dizia que“... (te) encontrei quando não quis mais procurar... e ninguém dirá que é tarde demais...”. E emendei com algum ritmo cubano, trilha sonora das minhas noites insones naquele lugar. Onde o verão sempre fica pra mais tarde.

Poderia jurar que fiquei assim durante toda a noite. Até que a moça parou de cantar. Próxima música. E um de nós, nem sei quem, respirou mais fundo. Pronto. Abri os olhos. Na verdade, embaixo da janela estavam minhas pernas. Levantei para tomar banho. Ele, pra encher a taça, selecionar nova trilha... Sei lá. A minha razão – e a dos outros – estava de volta. Mas pra quê, se não me serviam de nada.

Acho difícil... Mas será que dá pra tentar isso de novo?

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Antibiótico Importado

“Ahn... Então... Você já está indo pra lá? É, acho que não vai dar pra ir. Ainda estou no trabalho. Está chovendo. Moro longe. Meu gato está sozinho, com medo da casa nova. E deve estar com frio. Ainda tenho que tirar a roupa da máquina. Eu estava louco pra te ver, mas acho que não vai dar. E o Mário ligou, disse que lá perto da sua casa está tudo alagado.”

“Alagadooooo”??? Como assim? Sei bem o quanto o último argumento soou como “desculpa esfarrapada”. E foi exatamente por isso que resolvi me render a ele. Fingi que acreditei. Sem mais perguntas. Já se gabava o meu pai: “Que menina diplomática!”. Não ia ficar discutindo o porquê da preguiça em me encontrar, não é? Preguiça não se explica. Moro no mesmo lugar há quatro anos. A única vez que aquilo alagou foi há uns dois meses, numa encenação do dilúvio. Algo sem precedentes. O Rio desabou em água. Só comparada àquela chuvinha encomendada por Noé. Lembra? O danado estava louco pra estrear o iate novo. Dizem que tinha até zoológico lá dentro. Aí chamou a família toda, ensaiou uns passinhos de lambaeróbica e “cabum!”. Fez-se a tempestade. Foi a primeira dança da chuva de que se tem registro. Durou uns 40 dias e 40 noites.

Mas voltando ao bolo, digo, ao assunto... Cheguei em casa uns 20 minutos depois de informada do alagamento. E, para a minha surpresa, nem precisei nadar do wolksvagen azul de 48 lugares que me trouxe, até o portão do meu prédio. Pasmem. Chovia. Mas era só. Foi então que resolvi colocar em prática uma vingança secreta. Será que podemos chamar de vingança, se o alvo nem ficaria sabendo? Ah, não importa. Na verdade era só para eu me sentir melhor. Algo do tipo “não desperdicemos a noite e muito menos sua auto-estima”. Saquei o celular da bolsa. Numa velocidade de duas polissílabas por segundo, resolvi minha vida: “Can you meet me?”. Não, não havia polissílabas na frase (existem polissílabas no inglês?).

Em 40 minutos ele estava lá, assistindo ao jogo do Flamengo comigo. Cheiroso, disponível, com meu presentinho de aniversário na mão (é... completei 21 anos estes dias) e achando lindas todas as minhas caretas de “tira essa bola daííííí, seu imbecil!”. Pronto pra me roubar deste país dos bolos. Isso sem mencionar a aula de inglês free. Arrisco-me a dizer que nem uma amnésia alcoólica seria assim, tão eficiente. Se vingança pessoal tem nome, atende por Mike. E foi um ótimo antibiótico para minha dor de corno.

“Quero que você conheça meu gato. Vem amanhã. Saio às 20h do trabalho.” Não, eu não acreditei neste papo. Óbvio que eu sabia que não era pra conhecer gato nenhum. Mas nós, mulheres, também temos necessidades (chocado? Pois é, temos. O joguinho do “não dou” é parte do floreio.). Marquei. No meio da tarde do “amanhã”, recebo um torpedinho suspeito. “Quando você vem?”. Inocente, respondo: “Hoje. Vai estar lá às 20h?”. Eis que recebo o míssil-surpresa. “Estou trabalhando. Mas verei se posso sair mais cedo”.

Você deve estar se perguntando: “E você ainda ficou surpresa, sua bucha ingênua?”. É, confesso que não fiquei surpresa não. Decepcionada é a palavra. Pensei um pouco e cogitei: “Ele só pode estar brincando. Deve ser um enviado da Monique para testar meu ascendente em gêmeos, meu lado frio e exclusivamente carnal. Aquela viciada em horóscopos! Ou um subordinado do Capeta, para que eu pague todos os pecados que cometi com meu ex”. Agora um desabafo: torço pela primeira opção. Se for castigo, pressinto bolos nas próximas 73 encarnações.

Desta vez eu não tinha Mike, nem jogo do Flamengo, nem presentinho. Meu antibiótico já tinha regressado pra terra do Tio Sam. Neste dia fui à aula, toda resignada. Mais tarde o telefone toca. “Consegui sair mais cedo. Vem?”. Calma. Até bucha necessitada tem limites. “Ah, tenho que ir pra casa estudar”. Que orgulho de mim mesma! Fim da aula. Corri pra casa. Liguei o computador numa carente ansiedade. Não, não entrei no bate papo da UOL. Não desta vez. Foi um e-mail, mesmo: “Mike! Are you there? Miss you.” Pensei até em acrescentar um tempero à vingança. Chamar pelo apelido do outro é malvado, né? Seria perfeito! Mas não sabia como dizer “fofolete” em inglês. A ignorância me convenceu a não temperar. E assim ficamos por toda a noite. E pelas noites e dias seguintes. Web meetings.

Graças a Deus - ao capeta ou a Monique -, web bolos são mais difíceis de acontecer. Recebo e-mails em dias chuvosos e Mike pode acariciar o gato solitário enquanto admira minha cara de sono na web cam. E para as demais necessidades... Você já deve ter ouvido falar de alternativas bem criativas, não é?

Tratado de Coexistência

Não era só uma carta de amor. Aliás, nem era de amor que ela falava. Era sobre orgulho ferido, medo e alguma dose de arrependimento. Esse coquetel de sentimentos pós-namoro pode ser facilmente confundido com amor residual. Mas não era. Era pura dor-de-cotovelo. Ora, durante todo o ano em que estiveram separados, a ausência dele não a incomodava tanto, por que isso agora? Talvez porque o problema não fosse a falta, mas a presença.

Ela só percebeu que ele estava presente, que existia de fato, quando o viu com outra. Ali Rodrigo deixou de ser uma alma penada e reencarnou naquele amante. Não era mais só o ex que mandava sinais vez ou outra, na tentativa de resolver “assuntos inacabados”. Era o ex que jantava fora com a namorada nova e isso incomodava. “Deve se temer os vivos, não os mortos”.

E ela que há tanto acreditava que ele não viveria sem ela... Como comensalismo: ele foi a rêmora que precisava dos restos do tubarão Ana para sobreviver. Foi, não era mais. Ana continuava a comer, mas Rodrigo não apreciava mais as migalhas. Ele tinha a outra, a nova, a namorada, para servi-lo um banquete. Ver como ele saboreava de novo o gostinho de comida feita na hora doía muito.

Lembrou-se de quando eles provavam juntos as coisas frescas. Lembrou-se de como, com o tempo, a familiaridade com o sabor embrulhava o estômago. Foi nessa fase que Ana escolhera a separação. Precisava, desesperadamente, experimentar o novo. Mas um ano depois, quando Rodrigo estava com ela, bem ali, diante dos seus olhos, entristeceu-se. Deixou o restaurante de sempre e começou a escrever a carta.

Tentou organizar em palavras o tanto de sentimento que tinha. Não era só uma carta de amor. Era uma rendição e, ao mesmo tempo, um decreto de alforria. O necessário para que coexistissem. Colocou em um envelope, deixou com o porteiro do prédio dele no dia seguinte. Ligou para um amigo: Ana finalmente tentaria culinária japonesa essa noite.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Para uma menina com uma flor

Perdi a conta das vezes que ouvi minha avó dizer "ah, quem está apaixonado não vê defeitos". Hoje me dei conta que, no auge dos seus 70 e poucos anos, minha vovozinha nunca deve ter se apaixonado. Preocupante. Ou não. Sei lá. O que importa é que ela estava enganada.

Se você, caro leitor que não tem mais o que fazer com seu tempo, a não ser ler este blog preguiçoso, desconfia que é uma vítima deste mal que assola os mais despreparados, responda com sinceridade a pergunta a seguir: Você conhece e gosta dos defeitos do seu amado? Ok. O "gostar" também pode ser substituído por "aturar de forma paciente" ou "achar que é um defeitinho fofo". Se a resposta for não, relaxe. Alarme falso. Mas se a resposta for positiva, meus pêsames.

Bem vindo ao clube daquela que atura a flatulência do amado, com um sorriso no rosto, porque "isto é normal". E também daquele que ama os surtos periódicos da namorada, quando esta acerta toda a louça na parede, num ponto pouco acima da vítima apaixonada (É, Thales, você pode reclamar mas eu sei que você adora!). Ou ainda a que finge não perceber que ele nunca sai de casa pra não gastar dinheiro. "Ah, isto nem é importante".

Pois é. Os defeitos vem no pacote. Ame-os ou deixe-o. E não, não percebi que minha avó estava errada porque estou apaixonada. Pelo menos não a nível consciente. Mas foi depois de ler o texto abaixo, do brega-mor, Vinícius de Moraes. É grande, mas lindo! Sem preguiça. Vale a pena o esforço!


Para uma menina com uma flor


Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.
E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras.

E porque você sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre um nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, parecendo uma santa moderna, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der uma paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta e não concorda porque ele é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você, se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse cantando sem voz aquele pedaço que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nessas montanhas recortadas pela mão de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa.

E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

sábado, 23 de janeiro de 2010

AMAR, verbo intransitivo (Mário de Andrade)

Neste natal ganhei, de um amigo muito querido, um livro sobre o amor. Mais um dentre os milhões que já foram escritos com este tema tão lugar-comum. A dedicatória já era um presságio do que estava por vir: “Só que o amor, neste livro, é baixo”. Empolguei-me. Devorei.
Mas para a minha surpresa e, provavelmente, para a surpresa do Beto (que me deu o livro) quando resolver ler a obra, a história trata do amor comum, cotidiano, rotineiro. Em todas as suas fases: sedução, atração, sensualidade, rotina, dor da perda, esquecimento, novo amor. Não é exatamente o que eu e Beto costumamos chamar de “baixo”, mas tem uns momentos deste tipo, assim como qualquer relacionamento. É uma lição de amar, literalmente, já que a história se desenvolve em torno de Fräulen, uma pseudogovernanta contratada para ensinar ao adolescente Carlos os prazeres e dores do amor.
Fräulen deseja voltar para a Alemanha, país em que nasceu, e casar. Sonha com o marido que “chega da cidade escura... vai botar os livros na escrivaninha... Depois vem lhe dar o beijo na testa... (…) Jantariam quase sem dizer nada... Temos concerto da Filarmônica amanhã.”, diria ela. Quer um amor comum – para ela o mais verdadeiro. E este trabalho com Carlos seria um dos últimos para que ela pudesse, enfim, juntar todo o dinheiro necessário para voltar a sua pátria.
E Fräulen ensina. Carlos se apaixona. Fräulen quase se deixa levar pela semi-inocência do aluno. Sente ciúmes. Sente ternura. Sente pena. Por fim “Carlos amava com paixão”. Descobre outro sentido para a palavra felicidade. Descobre que “a felicidade é tão oposta à vida que, estando nela, a gente esquece que vive”. E Fräulen deixa Carlos. A lição está completa. Dura lição para o adolescente. E para a professora. Carlos fica apenas com esta “coisa tristonha e desagradável que dos portugueses herdamos: a saudade”. Mas aprende. AMAR é VERBO INTRANSITIVO. Não pede explicações, complementos. É apenas amor. E Carlos torna a amar. Como todo mundo. Amor comum.
 
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